O braço de ferro da regulamentação
Desde os anos 90 que a terminologia “trabalho sexual” é utilizada pela ONU e pela Organização Internacional do Trabalho como forma de dignificar os indivíduos que praticam a atividade e erradicar o estigma associado à mesma. Mesmo assim, esta expressão continua a levantar dúvidas e os próprios partidos portugueses têm posições opostas. Isto ficou claro no debate sobre o eventual enquadramento legal da prostituição e a descriminalização de quem a facilita, que decorreu na Assembleia da República, a 4 de junho de 2020.
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Tanto o trabalho sexual como o consumo estão pouco regulamentados na lei. Da escassa legislação que existe, encontra-se a Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, que proíbe a emissão, em sinal aberto, de conteúdos que possam prejudicar “séria e gravemente” a formação da personalidade de crianças e adolescentes, designadamente os que contenham pornografia.
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Entretanto, ativistas debatem se profissionalizar o sexo devia ser legal ou não. O Movimento Democrático de Mulheres (MDM) apoia a abolição deste trabalho. “Nós consideramos que é uma das formas de representação de violência sobre as mulheres”, elucida Tânia Silva do MDM. Natural de Famalicão, a ativista costuma estar pela Universidade do Minho a sensibilizar os mais jovens sobre o papel da mulher na sociedade.
Caracterizando a indústria do sexo como “um negócio muito lucrativo”, desconfia que existam pontos positivos para quem consome pornografia. É a banalização do conteúdo porno que a assusta, seja pela publicidade gratuita presente na Internet, seja pela abordagem da comunicação social do assunto. Tânia chama à atenção para o padrão de representação do sexo onde “é sempre projetada uma forma de domínio sobre o outro”. Enumera o masoquismo, o BDSM e o sexo oral enquanto outrem aperta o pescoço.
Do outro lado da moeda está Beatriz Pedroso, estudante de Direito e militante do Bloco de Esquerda (BE). Aos 19 anos apresenta uma opinião vincada sobre a indústria do sexo. Admitindo que a pornografia “impõe hierarquias de género que não são saudáveis”, salvaguarda que o trabalho sexual envolve dois adultos com relações “100% consentidas”, existindo pessoas que “gostam de ser dominantes ou submissas”. Enfatiza ainda que, se não for mútuo acordo, “é violação”.
Para um “consumo informado”, é a favor de uma educação sexual mais inclusiva nas escolas, onde não haja receio de dizer “é ok descobrirem o vosso corpo”. A própria sentiu falta disso, durante a sua formação. Há quem use o conteúdo adulto para se descobrir, mas “é preciso haver uma solução para quem não se sente confortável a assistir”.
Contrariando a perspetiva da militante, Tânia Silva crê não existir vantagens em ter acesso ao porno tão cedo. “Uma mente limpa que nunca teve qualquer tipo de relação sexual, vai idealizar o sexo da maneira que está a ver”. Aliás, vê na pornografia um mote para a violação e acredita que nenhuma criança sonha expôr o corpo como forma de trabalho.
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“As violações acontecem porque não nos habituamos a ouvir um não. A própria pornografia apresenta isso mesmo: tu nunca ouves um não. Criou-se um conceito de prazer com extrema violência”
Tânia Silva
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Tânia Silva coloca em causa a dignidade deste trabalho, mas não das pessoas que o exercem. Pensa nas mulheres, que ao longo do seu dia “são penetradas em todos os buracos que têm”. Compara-as aos “homens do lixo” que, ao chegar a casa, tomam banho e estão prontos para a manhã seguinte. A diferença é que elas ficam com “mazelas interiores”.
Tendo isto em conta, apresenta como solução a criação de programas de saída da indústria, uma vez que ninguém neste meio vai contar “uma história cor de rosa ou de amor”. A principal dificuldade é o “aliciamento” dado pelo dinheiro, raramente encontrado noutras profissões. Esta não é de todo uma resposta para Beatriz Pedroso, porque existem trabalhadores que não desejam sair.
“Os investimentos têm de ser para quem quer ficar, para ter segurança, e quem quiser sair está à vontade”.
Beatriz Pedroso
É uma profissão que “tem de ser” segura, de forma a que ninguém se sinta em risco quando sai de casa. Defende, então, um plano social que acabe com o mito que existe à volta desta área e uma legislação que proteja os profissionais do sexo e que não criminalize os consumidores. Quanto à regulamentação, falta ser debatida juntamente com os atores pornográficos, visto que são eles quem estão "nessa posição e não pode ser alguém de fora a decidir”.
Quem vê, inconscientemente ou não, apoia o trabalho sexual. No meio da discórdia, ambas as ativistas encontram um ponto em comum. Só começando a debater é que a sociedade está preparada para abordar o tema e só assim a legislação avança.
Embora o consumo continue escondido no histórico do computador dos portugueses, a pornografia é um tema em constante discussão, tanto no Parlamento como em manifestações de rua ou dentro de casa. Seja sobre a Internet, o vício ou a indústria, resta à população informar-se e escolher aquilo que prefere assistir.